Os dias seguiram o rumo devido, conforme a ordem natural há muito estipulada, entre a paz, sempre ambicionada, e o indesejado caos da guerra civil aos moradores de Belém gratuitamente proporcionado. Daquele dia em diante, a rotina indicava os caminhos dos dias para José e Maria, que nela se embrenhavam, sem novas veredas ou expectativas, a não ser o caminho da paz e do amor conjugal, que só cresciam. Não sou lá um conhecedor em matéria de ciência. Porém, se me permite o aparte, ponderando atentamente às coisas, todo efeito carrega em si a marca de sua causa. Raramente algo, uma vez feito, se desfaz por si só. Se uma determinada causa é de ordem natural, não há muito o que fazer contra ela, se faça. Contra a chuva e a tempestade, só se adapta. De outra banda, se a causa é de ordem cultural, o buraco é mais embaixo. Isso porque cultura é o resultado da intervenção humana em determinado meio. Tudo que é natural, por força maior, nos é imposto. Tudo o que é cultural, por sua vez, é composto, pois criado pelos anseios materiais e imateriais do homem racional, que, a par das condições naturalmente impostas, intervém na natureza, levanta nela os muros da própria experiência, onde deixa suas marcas com raízes, por vezes indeléveis, a outras gerações, quais nela se espelham para pior, ou melhor, condição de existência. Nesse sentido, se referem às doutrinas que reclamam o relativismo cultural. Isso é, o julgamento sobre os benefícios ou malefícios oriundos de determinada cultura se torna relativo, a depender de como e quem a olha, tendo por base as causas e os efeitos no cerne da experimentação, em comparação com outras culturas. Isso eu não sou eu quem o digo, embora o reproduza, crente de algum sentido. São palavras lidas em um ou outro livro do passado, emprestados por conhecidos de outrora, que, de certa forma, hoje integram outro lado da história. Sem delongas, em palavras outras, cultura é tudo o que o ser humano semeia com suas vivências, com base no tratamento das evidências captadas, testadas à luz da experiência, angariadas ao longo da existência por influência dos elementos no ambiente natural que o rodeia, como a vegetação, o clima, a moral, a religião, a própria história e tudo mais o que, criando, se lhe concretiza e lhe aprimora os sentidos. Às memórias, talvez um destino. A cultura se infirma, fraqueja, transmuta-se constantemente, e, quando menos se espera, se impõe e se reafirma. Não acredito no acaso. Embora dada por desconhecida, sempre haverá uma causa que um efeito correlato a estabeleça. A causa do Estado é a delegação dos interesses de um povo às instituições que lhe deem gestão e amparo. A vontade do Estado manifesta-se por atos. Esses nascem das decisões. No nosso caso em particular, como já foi dito, não importa quanto tempo tenha se passado. Pereira Passos foi quem deu o primeiro passo à composição da nossa triste história. Uma inconsequente decisão a favor de uma ampla minoria.
Dali em diante, o que se seguiu foram acontecimentos umbilicalmente interligados à causa da expulsão. Hoje, vivemos seus efeitos. Oito ou nove meses se passaram daquela noite de sincero amor. Noite na Favela de Belém. O clima quente abafava os ânimos cansados dos moradores na comunidade. Uma movimentação tinha curso desde o final da tarde, como que anunciando um hiato de paz entre causas desconhecidas. Sentinelas fortemente armados subiam e desciam as escuras veredas da comunidade, com ordens aos moradores que se trancassem nos barracos, até mandamento contrário. Por medo, obedecíamos sem questionar. Há dias, Maria não se sentia bem. Naquela noite, o quadro se lhe agravara aos sintomas de enjoo contínuo, febre e vertigem. José rendia-lhe cuidados, e, por precaução, haja vista a ordem do comando, pediu à vizinha que lhes fizesse companhia até o final daquela ocasião, para auxiliá-lo com a mulher, caso necessário algum tipo de ajuda. O Pronto Socorro ficava longe. O Hospital, nem preciso dizer. Por óbvio, não havia médicos na favela. Em casos assim, socorriam-se os moradores de curandeiros ou pessoas versadas em medicina dita natural, com algum tipo de conhecimento rústico contra os sintomas das moléstias mais corriqueiras. Dirigindo-se à casa do lado, chamou por Mãe Carola, a quem fez o pedido, prontamente aceito. - Boa noite Carola. Maria tem a saúde sofrido de causas desconhecidas. O morro está em alerta. Poderia nos acompanhar durante a ordem de recolhimento? Seus dotes podem ser necessários. Isso, claro, se não lhe tomar o tempo das obrigações.
- Com gosto, José. Em instantes lá estarei. Na casa do casal, Mãe Carola pôs-se diante de Maria e José. Esse, por precaução, trancou as portas, janelas e todos os buracos aptos ao ingresso de uma bala perdida. Sentaram-se na cama, onde jazia Maria.
- Tá sabendo de algo, Carola? Há tempos não víamos essa movimentação na comunidade. Algum com o que nos preocupar? – disse José, entre um afago e outro à testa da mulher, a ver se tinha febre. - Aqui, nada é certo. A única certeza é o súbito, quando chega aos gritos, pela voz de uma firme incerteza. Durante a tarde, no entanto, ouvi sussurros pela vendinha de que uma operação policial teria início em tempo certo. Quando e lugar, não sei dizer. O filho de Olga, lembra-se dele? O filho de Olga tem contatos no destacamento policial, onde entrega marmitas. Se for verdade, veja bem, se for verdade, diz-se por aí a respeito de um decreto para uma busca de averiguação em uma comunidade da nossa cidade. Qual? Isso eu também não sei dizer. Fez uma pausa ante o levantar esperto de Maria, que correu ao banheiro para vomitar. - Isso aqui é uma balbúrdia – disse José. A paz anda de mãos dadas com a desconfiança, como que à condição de termo prévio, e assinado, para nos abandonar.
Carola deu de ombros, dirigindo-se ao banheiro para auxílio da mulher. Conduzindo-a novamente à cama, a vizinha fixou olhar na barriga inchada de Maria, então escondida pelos grossos vestidos em que talvez a ousasse ocultar. Até aqui, não se sabia, mas Carola, em tempos passados, fez-se conhecida pela argúcia com partos de urgência. Não tinha curso ou qualquer formação oficial. Também não alcançava o posto de parteira, mas se necessário, como o foi em outras ocasiões, agia às pressas e com diligência para auxílio das vidas iminentes, ansiosas por principiar. - Tá grávida? – Mãe Carola sussurrou aos ouvidos de Maria. Lá fora, os ecos distantes dos tiros se perdiam entre gritos. O barulho dos passos dava ritmo àquela maléfica sinfonia, percurtida entre botas, chinelos e sapatos...gritos e tiros, cada vez mais altos. O céu se fechara entre grossas nuvens que anunciavam a tempestade. O som do mar distante, temporariamente ofuscado por rajadas. Embora lacrada, o desespero sem pedir entrou, tomou o seu lugar na casa. Das opções possíveis, nenhuma era segura. José ficou imóvel. As ideias, tão comuns e espontâneas, naquele momento, era como se nunca as tivera tido. O cérebro se esforçava em busca por uma razoável decisão sobre o que fazer. O manejo da consciência se torna dificultoso quando o medo se lhe impõe. Nesses casos, o perigo prepara o corpo, inflando-lhe os pulmões para livre trânsito do ar. As veias se dilatam para a fuga da sobrevivência enquanto instinto, quase nada racional. A razão, entretanto, pedia espaço, com lembranças a José de que ele não estava só. O som dos passos se aproximava. José suava. Cogitava abrir as portas, a menos para ver o que se passava. Mas nada. “Viver é perigoso” – pensou, lembrando-se de uma passagem certa vez ouvida. Cogitou se tratar de uma máxima religiosa, quem sabe mesmo até um excerto bíblico. Mas nada. Ignorava a poesia ou qualquer espécie de alto pensamento. Não vinha ao caso. Também resultado algum lhe traria. Cinco batidas à porta com a força de um soldado em castelo conquistado, ao mesmo tempo em que Maria gritava. - Abram a porta! – a voz de ordem. Lá fora, um som estridente explodia no ar, já encharcado pela chuva. Fogos de artifício retumbavam, colorindo o escuro céu. Os passos diminuíam, à medida em que interrompidos pelos homens à porta. Do lado de dentro, o inesperado. Pavorosos gritos, tal qual criança recém-nascida. - O que é isso, Mãe Carola? - Rápido, traga-me todos os panos de que dispuser nessa casa. Traga uma tesoura, uma faca e um pouco de álcool. Tua mulher entrou em estado de parto sem nem se dar conta de que estava grávida. Ou talvez o soubesse e nada lhe tenha dito. Por Deus, José. Como isso pode ter acontecido? Por milésimos de segundo, o mundo parou com o tempo. Viu-se pai. Na escura retina de seus pretos olhos, de perto, o reflexo formava a imagem de uma criança forte que chorava sem cessar. Um choro que não era de alegria, tampouco de lamento.
Sofrimento? Não sabia. Transbordava em seu corpo uma mistura de sentimentos incapazes de serem processados com clareza diante de tamanho tormento. Talvez fosse um sonho. O que não lhe seria tão contraditório. A mente é cheia dessas artimanhas. Há sonhos tão ou mais reais que a própria vida. Pra melhor aferição, fechou os olhos e os abriu após segundos. Não bastasse o temor da ocasião, trovões entre fortes raios mantinham as ordens à chuva torrencial que desabava sobre o barraco do casal, infiltrando a água inclemente nos buracos invisíveis, então ignorados, carentes de reparação. Sem que tenha atendido aos chamados na porta, essa aos chutes fora derrubada, quando uma equipe composta de cinco agentes aparentes, armados e à preta farda, se anunciaram e adentraram ao local. - Encosta! Mãos pra cima! Alguém armado aí dentro? – bradou o mais alto deles. Não era incomum esse tipo de operação na comunidade. Muitas vezes travestida de legalidade, a polícia era enviada à favela sob o pretexto de combate à criminalidade, que, de fato, era constante e se afirmava. Uma verdadeira guerra do Estado contra os famigerados sentinelas. Sem reação, José ficou mudo. Por mais corriqueiro e instintivo fosse o mais singelo ato de interlocução, as palavras falhavam. Correu ao quarto. Maria chorava enquanto a vizinha a consolava. O bebê não estava lá. Voltando-se à porta, agora ao chão, os agentes o detiveram. - O senhor se acalme e se assente. Vamos fazer uma averiguação. Um raio. Um apagão. José chorou.