Cultura

Ressurreição Capítulo I - A favela de Belém



Aqui no morro, as noites mais falam do que silenciam. Em busca de maior segurança para os propósitos que ouso lhe contar, aguardei pelos primeiros sinais da madrugada, ao cabo da qual, na trégua da morte rotineira destes lados da cidade, caminhei por alguns quilômetros, noite afora, buscando me esconder das falsas, por vezes, infiltradas companhias. Todo o cuidado é pouco. Sentinelas se camuflam por toda parte. Isso porque, entre nós, guardo em mim uma verdade, informação pela qual muito bem se paga, a ponto de ganhar a vida o cão que a propague. Eu, no entanto, não sou mercador, corrupto ou corruptor. Não a boto à venda, e por isso posso muito bem ser varrida desse mundo. No mínimo, torturado. Careço de muita instrução. O rústico do básico, oportunizado pelo país nas mãos do Estado. Venho de origem simples, sou filho de pais trabalhadores que muito sofreram e sofrem com as condições a que foram expostos, sem outras opções. Com muito esforço, cheguei ao cume desse penhasco, clareado pela luz da lua que inflama a cidade, e, talvez por pena, me concede um magro feixe de luz. Luz suficiente para que não me perca. E com esse fôlego, reabastecido por medo e missão, venho lhe contar o que sei e que, de certa forma, ainda que indiretamente, testemunhei. Hoje, maduro o suficiente para compreender o que antes não me era possível, digo sem receio, à margem da convicção, que a Verdade tem muitas faces a partir das quais pode ser interpretada. Isso é conforme a vontade dos leitores, dos partidos, das distintas classes criadas, das mídias, milícias ou mesmo das instituições. Por fruto das experiências vividas, digo-lhe, por conhecimento prático, angariado pela dor, que toda informação é preciosa. O quilate, no entanto, depende mais de quem e de como se interpreta. Nesse país, a Verdade é um animal selvagem, embora puro, sob a mira constante dos praças, a mando de um capitão. Verdade é que as verdades sobrevivem escondidas das nossas comunidades, longe desse lixo sem asfalto, onde vivem as pessoas pobres, filhas majoritárias dos libertos escravos, que não se cansam e clamam por justiça tão somente por necessidade. Isso é e sempre foi, desde quando expulsos de suas casas, enquanto viviam pacificamente no centro da cidade. Com a República, veio a ordem e a ideologia prática de Pereira Passos, prefeito à época recém-empossado. “Mandem todos embora. O centro há de ser a luz, o novo marco do nosso Estado. O Rio será Paris, e Paris, será o nosso bardo”.

À primeira vista, era uma noite qualquer, mas no morro, as aparências nunca descansam. A ordem, aqui, não é a do asfalto. O Estado, quando vem, vem à farda, mudo e com arma. Desde os primeiros despejos, com o bota-abaixo que varreu os pobres do centro da cidade, novas lideranças se formaram e se legitimaram. Não por eleição, talvez por efeito consequente do descaso, ou mesmo por franca necessidade. Meu barraco se situa nas imediações daquela encosta, onde a luz fraqueja com o pôr-do-sol. Com a ordem de Pereira Passos, nossos antepassados, sem teto ou dignidade sob a qual repousar, subiram os morros do Rio de Janeiro, onde aos poucos passos foram se acomodando, longe dos olhares da civilização. Primeiro, em barracos rústicos, construídos com os suores das calejadas mãos, com o esforço de quem desde cedo se adaptou à imperiosa necessidade de sobreviver. Nesses belíssimos morros, nascia a comunidade de Belém, hoje em dia tratada por favela, termo cunhado pelos soldados fugitivos da Guerra de Canudos, na Bahia, muitos dos quais aqui se assentaram, trazendo consigo a nomenclatura, forjando o nome à nossa identidade: a Favela de Belém. Situada em uma encosta íngreme, no começo de difícil acesso, Belém é hoje dividida entre um córrego poluído e um antigo cemitério. O advento da república trouxera relativa paz aos poucos bem nutridos. Para nós, duvido que o fim do Império tenha sido efetivamente bom aos desprovidos. Embora felizes, vivemos com os restos. Aqui, onde as mãos dos direitos não alcançam, vive-se com os parcos que a sociedade oferece. Os homens, em geral trabalham diuturnamente como obreiros, pescadores e outras funções de baixos rendimentos. As mulheres trabalham nos barracos, cuidando dos lares e da educação das crianças. As mais ousadas, lutam por empregos sem carteira assinada em casas de família na cidade. Poucos seguem a vida nos estudos públicos, há muito de baixíssima qualidade. Ouros, na vida fácil auferem seus lucros, nos ofícios dispostos pelos líderes locais, conhecidos por sentinelas. Acredito é que o talento, de maneira ou outra, a todos é dado. Nisso eu me assento. Oportunidade para exercê-lo, entretanto, é o que rareia, mormente aos pobres e pretos. Do alto desse penhasco vê-se aquele barraco, cerca de alguns quilômetros de onde lhe escrevo. Daqui, a pé, em meia hora de caminhada ali se achega. Naquela casa, rústica e sem pintura, adornada pelas limpas roupas expostas ao simplório varal de barbante, é a morada do princípio, berço dos fatos onde nascera a Verdade que ouso lhe contar. Ali, nos meus tempos de menino, vivia Maria de Lurdes com o seu marido, José das Dores, pessoas simples, honestas e trabalhadoras. José era marceneiro, profissão incomum dentro da comunidade, o que lhe conferia certa oportunidade de subsistência, haja vista a carência de tal mister. Auferia os seus rendimentos como artífice de madeiras inutilizadas, buscadas aos restos na cidade, com as quais construía os barracos e alguns móveis básicos, necessários às famílias na comunidade. Homem sisudo, de poucas palavras, àquela época, com olhos fundos e cansados, caminhava entre os seus quarenta anos de idade, gastos pelas rotineiras dificuldades. Ainda assim, era forte. Embora com as costas arqueadas, carregava em si o pensamento tímido, expressamente ríspido, quando diante dos fenômenos de um mundo indigno, destituído de metáforas.

Era conhecido e respeitado pela vizinhança. Trabalhava com amor e, acima de tudo, sonhava com ardor...Não só por maiores oportunidades, mas por uma justa existência. No fundo, sabia que isso não viria tão cedo. Sentia na pele o peso das injustiças sociais. De ambos os lados, via o excesso. Àqueles, o excesso de muito. Aos seus, o excesso de pouco, na falta de oportunidades, a si e aos seus iguais, às crianças que sonhavam um dia com a dignidade da vida na cidade. Isso tudo lhe era muito e demais. Mas era responsável e agia conforme, cumprindo as leis, e, na medida do possível, fazendo aos outros o que podia. Conhecera sua esposa na nossa comunidade, a quem prestou serviço, auxiliando-a na construção daquele barraco, onde, após se apaixonar, foi com ela morar. Na época, Maria de Lurdes era jovem e solteira. Amou-a à primeira vista, construiu-lhe o seu barraco, pelo qual nada cobrou, salvo uma singela retribuição, em notas de carinho, parceria e amor. Chamava-a “Minha Luz”. A par das mãos grossas, pretas e calejadas, era sensível e carinhoso, zelando por Maria como a luz que se almeja clara ao fim das escuras veredas da favela. Maria de Lurdes, fiel companheira, cuidava da casa, lavava, cozinhava e amava. Era a vida que tinha. Simples, porém nada lhe faltava. O resto, pensava, “são excessos que não se leva quando formos nada”. Tinha sabedoria. Não a dos livros, mas a do corpo dobrado. A sabedoria que o tempo não ensina, mas impõe. Aquela que nasce do fogo do sofrimento, e brilha sem querer. Eram ambos conscientes das dificuldades. Planejavam ao menos um filho, que educariam e por quem empreenderiam esforços em dignidade. Se possível, longe da comunidade. Quem sabe por mérito, ou por sorte, uma criança iluminada, provida de dons inatos e com uma sensibilidade rara. Afinal, ali, sonhar era o direito mais exercido e, por sorte, e por enquanto, ainda não sujeito de ser fiscalizado. Voltemos aos fatos. À primeira vista, era uma noite qualquer. Após o longo interstício de trabalho suado, naquele dia, José regressou à casa, onde Maria o aguardava pacientemente. Ao entrar em seu barraco, tirou os velhos sapatos empoeirados, repleto de serragens frescas, inflando o ar com cheiro de suor e de madeira. Da cozinha simples, Maria sentia o aroma indistinguível do marido, sempre no mesmo horário, quando à casa retornava ao final dos dias. - Tome um banho, meu querido, que a janta já lhe sirvo. Sem falar, beijou-a antes. Já no quarto, após o jantar, deitou-se, estirando os pés primeiro, depois o corpo inteiro, onde, suspirando, deixou-se ao pensamento a vagar. O cômodo era simples. Compunha-se de um armário amadeirado com verniz, onde dividia a guarda das roupas com as da esposa, situado em frente à cama, essa, à mão por ele mesmo confeccionada, com o carinho e o adorno típico do único leito em que talvez se deitaria pelo resto da vida. O colchão havia sido doado por clientes. Embora não fosse novo, era confortavelmente digno ao palco de suas noites de amor e de descanso. Não dispunham de televisão, tecnologia de ponta naquela época, possível apenas aos mais abastados. Ali, nada mais havia o que se fazer, com exceção de uma pronta recuperação ao dia vindouro, nos dias em que o morro franqueava a paz. Após arrumar a cozinha e lavar as louças, Maria o acompanhou, deitandose ao seu lado. Sentiu a presença dela no cheiro de um corpo asseado. De porte mediano, cabelos longos encaracolados, pretos como o céu em noite de inverno, Maria carregava o olhar sincero, pintado à cor de mel, com o qual, observando, adocicava aos encantos os que a interpelavam. Na pele, a cor morena clara harmonizava com a voz suave de uma calma que não desafina o tom da vida com o dom da fala. A par de todos os qualificativos, no geral, era bela, como poucas na comunidade. De olhos fechados, José aprazia-se naquele instante aparentemente ínfimo, tratando-o como merecido prêmio ao fim de um longo dia de trabalho. No ar, o cheiro da pele da mulher percorria o quarto iluminado sob cansada luz, que piscava quando em vez com breves quedas de energia, enfeitiçando o cansado juízo do marido. Abrindo os olhos, virou-se e viu Maria. Ali, palavra alguma fora dita. O silêncio se impunha, não como lei, mas como faculdade, aquiescendo-lhes o ânimo recém despertado quando os olhares se encontraram. Olhou-a como precioso minério diante de um lavrador. Aproximou-se. Tocou-lhe as grossas pernas em lentos movimentos, ao mesmo ritmo em que batia o coração, no que foi correspondido. Maria sentiu os pelos arrepiarem como fosse a primeira vez. Brindaram-se aos toques, enquanto José, subtraindo-lhe as baixas vestimentas, a beijou, lambendo-lhe o corpo quente com a ânsia de manter acesa a repentina chama contra o vento que não a quer eterna. A noite seguia calma. O vento brando refrescava o quarto quente pelo sol do dia, trazendo consigo o som distante das ondas do mar, que percorria o céu a esmo, empurrando as estrelas em direção à lua cheia, testemunhando, ao final, o enlace do amor sincero com a sintonia. Em berço esplêndido, amaram-se como nunca dantes.


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