Cinco horas da manhã, toca o despertador e levanto-me vagarosamente com os sentidos laços.
Sento-me à cama e acendo a luz. Abrindo os olhos, tateio ao lado. Um gole de água em amena temperatura foi deixado à cabeceira da cama ao princípio da noite anterior. Me alongo.
Passo um café barato, bem forte e quente, sorvido lenta e vagarosamente à fumaça do silêncio, na manhã em que todos ainda dormiam. Abro um livro aleatório que me acompanhe ao despertar, a fim de que uma ideia nova se afixe à mente neste novo dia que ao horizonte se aclara. No título, “Diários de um alienista: relatos de mentes e abismos”, escrito sabe-se lá quando por um tal Doutor Ezequiel Arantes.
Não dou a mínima para a fama ou a consagração das obras escritas. Também não me importam se são conhecidos ou afamados os seus autores. Basta-me o princípio de um interesse temático suficiente para que prontamente o adquira. Fecho os olhos. Abro o livro, contando com a sorte de uma surpresa pouco coloquial.
Às folhas amareladas, rabiscadas de anotações à mão, por um provável passado, e possivelmente hoje já velho leitor, a cor escura de um grafite rascunhado às ideias de uma mediana pressão, o capítulo de número 7, intitulado “O labirinto das verdades parciais”, em que se apunha a seguinte frase: “Não se deve combater o delírio com brutalidade, mas sim compreendê-lo como a poesia trágica que a razão, em seu desespero, recita para si mesma.” — Dr. Ezequiel Arantes. Medito no excerto. Fecho o livro, como que parcialmente satisfeito, e dirijo-me ao banho.
Na janela, o sol nascia ao largo céu, por entre a bruma da manhã que se aquecia na fumaça de uma água quente jorrada pelo chuveiro elétrico. No claustro do banheiro, o aroma dos xampus e sabonetes por minha querida esposa recentemente adquiridos.
Liemi dormia. Medito mais uma vez naquele excerto lido, sob o esforço necessário à compreensão da frase exposta pelo Doutor Ezequiel. Pensei na rotina de seu ofício e tudo quanto ele pode ter absorvido nos seus atendimentos como alienista.
Não sei dizer a época em que possa ter vivido, tampouco quando a obra foi escrita, conquanto supunha entre os idos do século dezenove ter existido, sabido nessa época, a aurora das ciências e do positivismo. Novamente o despertador.
Na tela do celular, o lembrete: consulta psiquiátrica às nove horas. Troco-me lentamente, vestindo roupas leves que amenizem o calor que se avizinha, comum aos dias que encerram o verão nestes trópicos. Era cedo ainda. Sento-me ao sofá para uma rápida leitura até o horário da consulta.
Fecho os olhos novamente, abro o livro de Ezequiel aleatoriamente e me deparo com o introito prefacial subscrito por um tal Doutor Benjamim Torres, Professor de Psicopatologia comparada, nos seguintes termos.“A obra que o leitor ora folheia não é um tratado convencional sobre a loucura, mas um mergulho ousado e compassivo nas vastidões da mente humana.
O Dr. Ezequiel Arantes, com a maestria de um explorador cuidadoso, propõe que o que chamamos de locura não é uma entidade estanque, mas um espectro que se amolda ao olhar que o investiga.
Ao narrar suas experiências, ele revela como a análise precipitada e a rotulação desmedida corrompem o entendimento do sofrimento alheio, transformando peculiaridades em diagnósticos e indivíduos em casos clínicos.
O leitor verá que, para o autor, a loucura é tão relativa quanto o conceito de normalidade que a contrapõe; não se define por seus sintomas, mas pela história que os acompanha e pelo contexto que os alimenta.
Ao longo destas páginas, Arantes deixa claro que o verdadeiro erro não é a insanidade, mas a nossa pressa em identificá-la sem antes escutá-la.” Fecho o livro. Era o suficiente.
Uma espécie de ansiedade ou falha de concentração me impedia qualquer vontade dirigida ao foco de uma leitura constante e linear. Um beijo em Liemi.
De moto, dirigi-me ao consultório, onde aguardei pacientemente pelo atendimento. No local indicado, uma clínica com várias especialidades médicas, incluindo a ala psiquiátrica.
Prontamente, adentro o prédio, muito bem construído, limpo e primorosamente adornado, onde também aguardavam outras pessoas, em grande parte mulheres, todas muito bem vestidas, claramente aos ares típicos das pessoas experimentadas e bem vividas.
Ali sentado, rascunhei alguns poemas de pouca importância, ideias obscuras vindas à oportunidade da situação que, por falta de tempo e espaço, deixo para compartilhá-las com o leitor em uma outra ocasião.
Dez horas da manhã. Um portal se abre. - Thiago? Guardo a caneta ao bloco de notas e acompanho um jovem rapaz que trajava camiseta preta, tênis e calça jeans.
Educado e bem afeiçoado, à vista de seus trinta e pouquíssimos anos, o qual só depois constatei ser o médico psiquiatra. Convidou-me a entrar.
Confesso que esperava pela imagem de um senhor entre média ou quase avançada idade, ostentando alvíssimos bigode e jaleco, munido de parcos cabelos brancos bem delineados.
Mas isso não importava. Era apenas um arquétipo que um dia fora por mim criado. Na sala, poltronas beges e acolchoadas à frente de uma mesa portentosa, sobre a qual, em uma estante de pedras que brilhavam ao toque da luz, alguns livros de ciências médicas.
Sentado confortavelmente, pus-me a observar a individualidade do local. Vagando a olhar, detive-me prontamente em uma das obras ali expostas, dentre as quais um livro fino, envolto em um saco plástico, como que ainda não lido, no qual se inscrevia: O véu da sanidade, por Ezequiel Arantes. - Muito bem Thiago. Prazer, sou Arthur Mendonça. Como você está? Começamos uma prazerosa e aparentemente despretensiosa conversa. Sabia que, no fundo, implicitamente era analisado em meus discursos, gestos, olhares e cadências de movimento. Dom da técnica.
Confesso que, como escritor, acreditava possuir de antemão alguns dos traquejos a partir dos quais o médico me interpretaria para o diagnóstico mais fiel possível.
Afinal, de alguma forma, quem escreve é bom leitor, e, consequentemente, bom intérprete e observador. Assuntos variados.
Casamento, filhos, trabalho, hobbies, problemas, família etc. Sempre em tom franco, aquele jovem psiquiatra dispunha de modos simples, em momento algum se colocando em lugar superior de fala.
Bem verdade, parecia antes um velho amigo então desconhecido. A conversa fluía como que se o tempo, em respeito ao ato, ali parasse. O relógio sobre a porta marcava onze horas. Não vi o tempo passar. Julguei então que deveria começar a falar das causas que ali me conduziam, e, como ao tecer um bom texto, adequei a necessidade à ocasião.
Passei a falar da minha agitação, aliada à dose diária de falta de concentração. - Doutor, acima de tudo, sou escritor. Carrego desde cedo a mania de me ater aos mínimos detalhes das coisas olhadas, sentidas, e, de modo geral, experienciadas e vividas.
Qualquer outra corriqueira situação, bem possível que me desinteresse, e, a meu ver, se despidas de boas possibilidades de significação, são-me indignas de serem apresentadas, debatidas, muito menos conversadas.
As notícias do jornal são boas apenas quando deem lastro à reflexão de uma quase-obra-prima. Os livros, que não me sejam óbvios e me tragam coisas outras que ainda não tenham sido meditadamente refletidas. Isso tudo, sem falar no hábito das rimas.
Assim também nas relações. Nessas ocasiões, é como se minha mente se desligasse. Como se eu, ingressando ao contato de uma conversa ou nova informação, me desplugasse totalmente, à cabeça vagando, analisando atentamente o voo de uma cigarra, a conversa íntima de formigas que trabalham entre pausas, ou um papo alheio que de longe aos palestrantes soe totalmente desinteressante, desde que me forneça a oportunidade na captura de palavras ali inúteis, porém úteis à composição de uma crônica voluntariamente insignificante.
Um breve silêncio. Aos modos de suas expressões faciais, Doutor Artur Mendonça balançava a cabeça afirmativamente, mas seus movimentos eram curtos e hesitantes, como se cada aceno tentasse se firmar em certezas instáveis.
A cabeça ora descia suavemente num gesto quase convicto, ora vacilava num ângulo que sugeria uma súbita reconsideração. Seus olhos estreitavam-se em uma atenção cuidadosa, enquanto os lábios esboçavam o sorriso paciente de quem julga ter encontrado uma verdade — ainda que frágil e sujeita a nova avaliação.
Ao mesmo tempo, fazia anotações em seu laptop, como que descrevendo atentamente o relato sobre algo que a ciência vagamente conhecia. Tomando a si um bloco de receituário com o brasão do Estado de São Paulo, à caneta, agora escrevia. - Muito bem, Thiago.
Por força de todo exposto, analisando-o detidamente, não vejo mal algum que lhe indique, quatro vezes ao dia, ininterruptamente, até a próxima consulta, a ingestão do fármaco denominado Metilfenidato, vulgarmente conhecido como Ritalina.
Entre os efeitos: insônia, desapetite, irritabilidade, dor de cabeça, náuseas e taquicardia. Fique tranquilo, por enquanto. A bibliografia médica contemporânea não dispõe integralmente de estudos ao caso com precisa metodologia.
A meu ver, sua saúde até que é boa. Portanto, só posso lhe dizer, pessoalmente, que o sintoma é incurável, embora deva ser tratado, como o mal da poesia.