Quando comecei a esboçar o primeiro artigo tratando sobre este tema, ou melhor, sobre o filme de Walter Salles, baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, ele (o filme) já estava em destaque nos principais festivais de cinema do Brasil e do mundo, mas não havia ganhado o Globo de Ouro e, muito menos, apontado no horizonte da academia norte-americana como indicação para receber o Oscar. E, vejam só, três indicações.
Mudei por duas ou três vezes o título e parte do teor do artigo, felizmente, por conta das ocorrências positivas no percurso do caminho. Como enfatizei anteriormente, se estabelece não somente como algo interessante de ser visto e ouvido – seja por conta do tratamento dado aos aspectos de fotografia, sonoplastia, figurinos e locação, mas também pelo tema que escolhe discutir e a forma como se dá essa discussão. Um primor.
E o Oscar foi para ele: “Ainda estou aqui”.
Evidente que ganha mais uma camada de valor à medida em que o assunto abordado – a dor e o flagelo, e também a resiliência, de uma família vítima da ditadura militar brasileira, é reavivado pelo contexto atual da sociedade brasileira, a saber: uma nova tentativa de golpe, orquestrada por um certo capitão, em conluio com outros vários militares, herdeiros e fãs declarados dos principais algozes, gestores e torturadores da ditadura de 1964. Um déjà vu desagradável.
Felizmente, as instituições democráticas, com especial ênfase ao poder judiciário, prevaleceram. Ditadura nunca mais!
Gostaria, nesse sentido, de retomar/indicar outras produções brasileiras anteriores ao “Ainda estou aqui” que puseram o dedo nessa ferida aberta. Tal qual o premiado de Salles, obras importantes no sentido de lançar luzes sobre esse terrível capítulo da história brasileira. Com resenhas de Alexandre Putti, do Carta Capital, são elas:
1) “Batismo de sangue”: baseado em fatos reais, o filme conta a participação de frades dominicanos na luta clandestina contra a ditadura militar, no final dos anos 1960. Movidos por ideais cristãos, eles decidem apoiar a luta armada. O roteiro é uma adaptação do livro de Frei Betto, vencedor do prêmio Jabuti;
2) “O ano em que meus pais saíram de férias”: a história se passa em 1970. Mauro é um garoto mineiro de 12 anos que adora futebol e jogo de botão. Um dia sua vida muda completamente, já que seus pais saem de férias de forma inesperada e sem motivo aparente. Na verdade, os pais de Mauro foram obrigados a fugir por serem de esquerda, deixando-o com o avô paterno. Porém o avô enfrenta problemas, o que faz com que Mauro tenha que ficar com Shlomo (Germano Haiut), um velho judeu solitário que é seu vizinho. Enquanto aguarda um telefonema dos pais, Mauro precisa lidar com sua nova realidade, que tem momentos de tristeza pela situação em que vive e também de alegria, ao acompanhar o desempenho da seleção brasileira na Copa do Mundo;
3) “Lamarca”: crônica dos últimos anos na vida do capitão do exército Carlos Lamarca (Paulo Betti) que, nos anos da ditadura, desertou das forças armadas e passou a fazer oposição, tornando-se um dos mais destacados líderes da luta armada;
4) “O dia que durou 21 Anos”: documentário sobre a participação do governo dos Estados Unidos na preparação, desde 1962, do golpe de 31 de março de 1964;
5) “Pra frente, Brasil!”: em 1970, na época dos anos de chumbo e do dito milagre econômico, o Brasil vibra com a seleção brasileira. Enquanto isso, combatentes da oposição são torturados;
6) “O que é isso, companheiro?”: o enredo conta, com diversas licenças ficcionais, a história verídica do sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, por integrantes dos grupos guerrilheiros de esquerda MR-8 e Ação Libertadora Nacional, que lutavam contra o regime militar instaurado no país em 1964.
Poderíamos acrescentar “Zuzu Angel”, “Marighella”, “Olga” e tantas outras referências cinematográficas brasileiras importantes e essenciais na compreensão de um Brasil que não deu conta de apaziguar as memórias de centenas de pessoas assassinadas, muitas delas desaparecidas, durante a ditadura militar brasileira. E, não se espante, alguns dos cruéis e demoníacos personagens da época continuam em ação nos dias de hoje, ditando regras, recebendo vultosos vencimentos, posando de “deus, pátria e família”.
Penso que, cumprindo ao menos uma parte do roteiro sugerido acima, em sessões que podem ser realizadas em casa mesmo (a maior parte dos filmes acima está disponível gratuitamente no YouTube), os equivocados que clamam por intervenção militar ou retorno da ditadura, certamente, se envergonharão disso e engrossarão o coro do “ditadura nunca mais”.
Antonio Luceni é doutorando em Artes pelo Instituto de Artes/UNESP e mestre em Letras (UFMS). Escritor membro da Academia Araçatubense de Letras.